Chegar à casa do neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho, no alto da Gávea, no Rio
de Janeiro, é uma emoção. A começar pela vista deslumbrante da cidade, passando
pelos macacos que passeiam pelos galhos até avistar as orquídeas que caem em
pencas das árvores, colorindo todo o jardim.
Ou seja: a competência desse médico, com 33 anos de profissão, que dedica sua
vida à medicina com a paixão de um garoto, pode ser contada em flores. E são
muitas.
Revista PODER: Seu pai também era neurocirurgião. Ele o
influenciou?
PAULO NIEMEYER: Certamente. Acho que queria ser igual a ele,
que era o meu ídolo.
PODER: Seu pai trabalhou até os 90 anos. A idade não é um
complicador para um neurocirurgião? Ela não tira a destreza das mãos, numa área
em que isso é crucial?
PN: A neurocirurgia é muito mais estratégia do que
habilidade manual. Cada caso tem um planejamento específico e isso já é a
metade do resultado. Você tem de ser um estrategista..
PODER: O que é essa inovação tecnológica que as pessoas
estão chamando de marca passo do cérebro?
PN: Tem uma área nova na neurocirurgia chamada neuromodulação,
o que popularmente se chama de marca passo, mas que nós chamamos de estimulação
cerebral profunda. O estimulador fica embaixo da pele e são colocados eletrodos
no cérebro, para estimular ou inibir o funcionamento de alguma área. Isso
começou a ser utilizado para os pacientes de Parkinson. Quando a pessoa tem um
tremor que não controla, você bota um eletrodo no ponto que o está provocando,
inibe essa área e o tremor pára. Esse procedimento está sendo ampliado para
outras doenças. Daqui a um ou dois anos, distúrbios alimentares como obesidade
mórbida e anorexia nervosa vão ser tratados com um estimulador cerebral. Porque
não são doenças do estômago, e sim da cabeça.
PODER: O que se conhece do cérebro humano?
PN: Hoje você tem os exames de ressonância magnética, em que
consegue ver a ativação das áreas cerebrais, e cada vez mais o cérebro vem
sendo desvendado.
Ainda há muito o que descobrir, mas com essas técnicas de
estimulação você vai entendendo cada vez mais o funcionamento dessas áreas. O
que ainda é um mistério é o psiquismo, que é muito mais complexo. Por que um
clone jamais será igual ao original?
Geneticamente será a mesma coisa, mas o comportamento
depende muito da influência do meio e de outras causas que a gente nunca vai
desvendar totalmente.
PODER: Existe uma discussão entre psicanalistas e
psiquiatras, na qual os primeiros apostam na melhora por meio da investigação
da subjetividade, e os últimos acreditam que boa parte dos problemas psíquicos
se resolve com remédios.. Qual é sua opinião?
PN: Há casos de depressão que são causados por tumores
cerebrais: você opera e o doente fica bem. Há casos de depressão que são
causados por deficiência química: você repõe a química que está faltando e a
pessoa fica bem. Numa época em que se fazia psicocirurgia existiam doentes que
ficavam trancados num quarto escuro e quando faziam a cirurgia se livravam da
depressão e nunca mais tomavam remédio. E há os casos que são puramente
psíquicos,emocionais, que não têm nenhuma indicação de tomar remédio.
PODER: Já existe alguma evolução na neurologia por causa das
células-tronco?
PN: Muito pouco. O que acontece com as células-tronco é que
você não sabe ainda como controlar. Por exemplo: o paciente tem um déficit
motor, uma paralisia, então você injeta lá uma célula-tronco, mas não consegue
ter certeza de que ela vai se transformar numa célula que faz o movimento. Ela
pode se transformar em outra coisa, você não tem o controle, ainda.
PODER: Existe alguma coisa que se possa fazer para o cérebro
funcionar melhor?
PN: Você tem de tratar do espírito. Precisa estar feliz, de
bem com a vida, fazer exercício. Se está deprimido, com a autoestima baixa, a
primeira coisa que acontece é a memória ir embora; 90% das queixas de falta de
memória são por depressão, desencanto, desestímulo. Para o cérebro funcionar
melhor, você tem de ter motivação. Acordar de manhã e ter desejo de fazer
alguma coisa, ter prazer no que está fazendo e ter a autoestima no ponto.
PODER: Cabeça tem a ver com alma?
PN: Eu acho que a alma está na cabeça. Quando um doente está
com morte cerebral, você tem a impressão de que ele já está sem alma... Isso
não dá para explicar, o coração está batendo, mas ele não está mais vivo.
PODER: O que se pode fazer para se prevenir de doenças
neurológicas?
PN: Todo adulto deve incluir no check-up uma investigação
cerebral.
Vou dar um exemplo: os aneurismas cerebrais têm uma
mortalidade de 50% quando rompem, não importa o tratamento. Dos 50% que não
morrem, 30% vão ter uma sequela grave: ficar sem falar ou ter uma paralisia. Só
20% ficam bem. Agora, se você encontra o aneurisma num checkup, antes dele
sangrar, tem o risco do tratamento, que é de 2%, 3%. É uma doença muito grave,
que pode ser prevenida com um check-up.
PODER: Você acha que a vida moderna atrapalha?
PN: Não, eu acho a vida moderna uma maravilha. A vida na
Idade Média era um horror. As pessoas morriam de doenças que hoje são banais de
ser tratadas. O sofrimento era muito maior. As pessoas morriam em casa com dor.
Hoje existem remédios fortíssimos, ninguém mais tem dor.
PODER: Existe algum inimigo do bom funcionamento do cérebro?
PN: O exagero. Na bebida, nas drogas, na comida. O cérebro
tem de ser bem tratado como o corpo. Uma coisa depende da outra. É muito
difícil um cérebro muito bem num corpo muito maltratado, e vice-versa.
PODER: Qual a evolução que você imagina para a
neurocirurgia?
PN: Até agora a gente trata das deformidades que a doença
causa, mas acho que vamos entrar numa fase de reparação do funcionamento
cerebral, cirurgia genética, que serão cirurgias com introdução de cateter,
colocação de partículas de nanotecnologia, em que você vai entrar na célula,
com partículas que carregam dentro delas um remédio que vai matar aquela célula
doente. Daqui a 50 anos ninguém mais vai precisar abrir a cabeça.
PODER: Você acha que nós somos a última geração que vai
envelhecer?
PN: Acho que vamos morrer igual, mas vamos envelhecer menos.
As pessoas irão bem até morrer. É isso que a gente espera. Ninguém quer a
decadência da velhice. Se você puder ir bem de saúde, de aspecto, até o dia da
morte, será uma maravilha, não é?
PODER: Você não vê contra indicações na manipulação dos
processos naturais da vida?
PN: O que é perigoso nesse progresso todo é que, assim como
vai criar novas soluções, ele também trará novos problemas. Com a genética, por
exemplo, você vai fazer um exame de sangue e o resultado vai dizer que você tem
70% de chance de ter um câncer de mama. Mas 70% não querem dizer que você vai
ter, até porque aquilo é uma tendência. Desenvolver depende do meio em que você
vive, se fuma, de muitos outros fatores que interferem. Isso vai criar um certo
pânico. E, além do mais, pode criar problemas, como a companhia de seguros
exigir um exame genético para saber as suas tendências. Nós vamos ter problemas
daqui para frente que serão éticos, morais, comportamentais, relacionados a
esse conhecimento que vem por aí, e eu acho que vai ser um período muito rico
de debates.
PODER: Você acredita que na hora em que as pessoas puderem
decidir geneticamente a sua hereditariedade e todo mundo tiver filhos fortes e
lindos, os valores da sociedade vão se inverter e, em vez do belo, as
qualidades serão se a pessoa é inteligente, se é culta, o que pensa?
PN: Mas aí você vai poder escolher isso também. Esse vai ser
o problema: todo mundo vai ser inteligente. Isso vai tirar um pouco do
romantismo e da graça da vida. Pelo menos diante do que a gente está
acostumado. Acho que a vida vai ficar um pouco dura demais, sob certos
aspectos. Mas, por outro lado, vai trazer curas e conforto.
PODER: Hoje a gente lida com o tempo de uma forma
completamente diferente. Você acha que isso muda o funcionamento cerebral das
pessoas?
PN: O cérebro vai se adaptando aos estímulos que recebe, e
às necessidades. Você vê pais reclamando que os filhos não saem da internet,
mas eles têm de fazer isso porque o cérebro hoje vai funcionar nessa rapidez. Ele
tem de entrar nesse clique, porque senão vai ficar para trás. Isso faz parte do
mundo em que a gente vive e o cérebro vai correndo atrás, se adaptando.
PODER: Já aconteceu de você recomendar um procedimento e a
pessoa não querer fazer?
PN: A gente recomenda, mas nunca pode forçar. Uma coisa é a
ciência, e outra é a medicina. A pessoa, para se sentir viva, tem de ter um
mínimo de qualidade. Estar vivo não é só estar respirando. A vida é um conjunto.
Há doentes que preferem abreviar a vida em função de ter uma qualidade melhor.
De que adianta ficar ali, só para dizer que está vivo, se o sujeito perde todas
as suas referências, suas riquezas emocionais, psíquicas. É muito difícil, a
gente tem de respeitar muito.É talvez esse respeito que esteja faltando.A Ética
e a Moral devem voltar as salas de aula,desde a mais tenra idade.
PODER: Como é o seu dia a dia?
PN: Eu opero de segunda a sábado de manhã, e de tarde atendo
no consultório. Na Santa Casa, que é o meu xodó, nós temos 50 leitos, só para
pessoas pobres. Eu opero lá duas vezes por semana. E, nos outros dias, na Clínica
São Vicente. O que a gente mais opera são os aneurismas cerebrais e os tumores.
Então, é adrenalina todo dia. Sem ela a gente desanima e o cérebro funciona
mal. (risos)
PODER: Você é workaholic?
PN: Não é que eu trabalhe muito, a minha vida é aquilo.
Quando viajo, fico entediado. Depois de alguns dias, quero voltar. Você perde a
sua referência, está acostumado com aquela pressão, aquele elástico esticado.E
como eu disse o cérebro se adapta,se habitua.
PODER: Como você lida com a impotência quando não consegue
salvar um paciente?
PN: É evidente que depois de alguns anos, a gente aprende a
se defender. Mas perder um doente faz mal a um cirurgião. Se acontece, eu paro
com o grupo para discutir o que se passou, o que poderia ter sido melhor, onde
foi a dificuldade. Não é uma coisa pela qual a gente passe batido. Se o
cirurgião acha banal perder um paciente é porque alguma coisa não está bem com
ele mesmo.
PODER: Como você lida com as famílias dos seus pacientes?
PN: Essa relação é muito importante. As famílias vão dar
tranquilidade e confiança para fazer o que deve ser feito. Não basta o doente
confiar no médico. O médico também tem de confiar no doente. E na família. Se é
uma família que cria caso, que é brigada entre si, dividida, o cirurgião já não
tem a mesma segurança de fazer o que deve ser feito. Muitas vezes o doente não
tem como opinar, está anestesiado e no meio de uma cirurgia você encontra uma
situação inesperada e tem de decidir por ele. Se tem certeza de que ele está
fechado com você, a decisão é fácil. Mas se o doente é uma pessoa em quem você
não confia, você fica inseguro de tomar certas decisões. É uma relação
bilateral, como num casamento. Um doente que você opera é uma relação para o
resto da vida.
Poder: Você acredita em Deus?
PN: Geralmente depois de dez horas de cirurgia, aquele
estresse, aquela adrenalina toda, quando você acaba de operar, vai até a
família e diz: "Ele está salvo". Aí, a família olha pra você e diz:
"Graças a Deus!". Então, a gente acredita que não fomos apenas nós. É
uma verdade.
PODER: Como você relaxa?
PN: Estudando. A coisa que mais gosto de fazer é ler. Sábado
e domingo, depois do almoço, gosto de sentar e ler, ficar sozinho em silêncio
absoluto. A outra forma, é ouvindo música bem baixinho.
PODER: E o que gosta de ler e de ouvir?
PN: Sobre medicina,história,ou filosofia. Agora estou lendo
um livro antigo, chamado Bandeirantes e Pioneiros, do Vianna Moog, no qual ele
compara a colonização dos Estados Unidos com a do Brasil. E discute por que os
Estados Unidos, com 100 anos a menos que o Brasil, tiveram um enriquecimento e
um progresso tão rápidos. Por que um país se desenvolveu em progressão
geométrica e o outro em progressão aritmética.Já na música,varia bastante,mas a
clássica me relaxa bastante.
Filho do lendário neurocirurgião Paulo Niemeyer, pioneiro da
microneurocirurgia no Brasil, e sobrinho do arquiteto Oscar Niemeyer, Paulo
escolheu a medicina ainda adolescente.
Aos 17 anos, entrou na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Quinze dias depois de formado, com 23 anos, mudou-se para a Inglaterra, onde
foi estudar neurologia na Universidade de Londres.
De volta ao Brasil, fez doutorado na Escola Paulista de Medicina. Ao todo, sua
formação levou 20 anos de empenho absoluto.
Mas a recompensa foi à altura. Apaixonado por seu ofício, Paulo
chefia hoje os serviços de neurocirurgia da Santa Casa do Rio de Janeiro e da Clínica
São Vicente, onde atende e opera de segunda a sábado, quando não há uma
emergência no domingo, e ainda encontra tempo para dar aulas no curso de
pós-graduação em neurocirurgia na PUC-Rio.
Por suas mãos já passaram o músico Herbert Vianna - de quem
cuidou em 2001, depois do acidente de ultraleve em Mangaratiba, litoral do Rio
-, o ator e diretor Paulo José, a atriz Malu Mader e, mais recentemente, o
diretor de televisão Estevão Ciavatta - marido da atriz Regina Casé que, depois
de um tombo do cavalo, recupera-se plenamente -, além de centenas de outros
pacientes, muitos deles representados pelas belas flores que enchem de vida o
seu jardim.