sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

José Mindlin, 95 anos de idade, o mais respeitado bibliófilo do país





Nascido em São Paulo em 1914, filho de imigrantes russos, José Mindlin ainda menino apaixonou-se pelos livros. Muito jovem, frequentava os sebos do centro de São Paulo e acabou por achar um jeito de comprar os livros sem pedir dinheiro aos pais. “Verifiquei que os livreiros dos sebos não estavam atentos ao que os outros faziam.

Alguns vendiam por 5 ou 10 mil réis o que outros vendiam por 20, 30 e até 50 mil réis! Por sua vez, esses vendiam por 5 o que os primeiros vendiam por 30, 40.” Rapidamente, viu ali a chance de incrementar sua biblioteca. “Comprava o livro dos sebos mais baratos e levava para o outro, o dos livros caros, e dizia: ‘Vou deixar em consignação e não quero ver dinheiro. Tire sua comissão e me credite o produto.’” Depois de poucos meses, o garoto tinha crédito em todos os sebos. “Eu comprava sem desembolsar nada”, fala divertindo-se.

Assim começa a história do mais respeitado bibliófilo do país. Sua biblioteca tem cerca de 40 mil títulos e a Brasiliana, coleção de livros sobre o Brasil e de literatura brasileira, chega a 25 mil títulos e foi doada à Universidade de São Paulo (USP ) em 2005. Livros, leitura, literatura brasileira e estrangeira, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Marcel Proust, Eça de Queirós e Guita, sua mulher e companheira por quase 70 anos – paixões que florescem em cada frase, em cada gesto, em cada canto da casa e da biblioteca. Na garimpagem, o desafio e a alegria de encontrar o objeto do desejo. Na leitura, o encontro sincero e real com o prazer. Esse é José Mindlin.

Sua história de vida confunde-se com os livros – desde a infância, sempre com eles, com histórias contadas dentro de casa. Como foi o início dessa paixão? Eu quase poderia dizer que nasci com o livro na mão, porque cresci em um ambiente cultural: meus pais liam, meus irmãos mais velhos também e o ambiente era de amor à leitura. Isso, naturalmente, me contagiou desde cedo. E, quando isso acontece, a pessoa tem de se conformar, porque vai continuar pelo resto da vida. Aliás, é o modo de dizer, porque acho que isso é uma bênção, ter esse gosto pela leitura. Quando falo sobre esse assunto, sempre digo que se trata de paixão incurável. Em geral, as boas paixões são incuráveis. E a leitura nem se discute, é um benefício para a vida.

Na sua casa, com seus irmãos e seus pais, vocês liam entre vocês? Líamos, sim. Eu lia para mamãe. Devia ter uns 12 anos e estava lendo Júlio Verne e gostando muito. A mamãe teve uma paciência evangélica de ouvir toda a leitura, mas os trechos mais cacetes eu pulava. De modo que, no fundo, foi uma coisa ótima.

O senhor começou muito cedo, com 12 ou 13 anos. Qual foi o primeiro livro raro que comprou? Aos 13 anos, comprei o primeiro livro raro em sebo. Era uma tradução portuguesa de Discurso sobre a história universal, de Jacques Bossuet, publicada em Coimbra em 1740. Como menino, fiquei fascinado pela antiguidade, depois aprendi que a data de edição é um fator secundário de avaliação. Há muito livro moderno que é mais raro e mais importante do que muito livro do século 16.

Como surgiu a ideia de formar uma biblioteca? Ela não foi planejada, fui comprando livros de acordo com as leituras que me interessavam. Com certa precocidade, perto dos 12 anos, comecei a ir ao centro, que a gente chamava de “cidade”, e as livrarias se concentravam ali. Eu não tinha uma verba para a compra de livros e, às vezes, aparecia um que me interessava muito e pedia aos meus pais. Eles me facilitavam a compra. Eu tinha certa retaguarda, porque eles viam o meu interesse pela leitura com muito bom gosto. Mas por vezes eu precisava fazer uma ginástica, precisava me entender com os livreiros, estabelecer uma relação com eles que, aliás, me olhavam com simpatia. Eu era um menino de calças curtas! E, assim, começou a se formar a biblioteca. E ela tem uma vantagem, pois não tem fim e eu, com a idade em que estou, 95 anos, posso verificar que isso é uma verdade.

O senhor nasceu em São Paulo, em que bairro? Nasci no Paraíso e minha mulher também. Infelizmente, eu a perdi em junho de 2007. Não éramos vizinhos, a casa dela era na 13 de maio, mas com saída para a Cincinato Braga, que foi a rua onde nasci. Mas só a conheci muitos anos mais tarde.

Como conheceu sua esposa, Dona Guita? Eu estava começando o quinto ano da faculdade de direito e, um dia, vi no pátio uma caloura cercada de rapazes cabalando para que entrasse em um dos partidos acadêmicos: o Libertador, o Renovador, partidos de estudantes. Eu olhei pra moça e disse: ‘Olha, tudo isso é bobagem, se você quer um bom partido, está aqui’. E ela me pegou pela palavra e tivemos quase 70 anos de convivência. Eu sou de 1914 e ela era de 1916. Dali estabeleceu-se uma relação que teve, a meu ver, as melhores consequências. Casamos em 1938 e isso durou até a morte dela, 68 anos depois.

Dona Guita foi sua companheira de tantos anos... Companheira em todos os sentidos, em todas as áreas, desde o namoro até depois do casamento, e a leitura foi um interesse central de nossa vida.

Qual a participação dela na formação da biblioteca? Ela lia, assim como eu, constantemente e, além das coisas mais simples, quando se tratava de obras raras, por exemplo, que poderiam comprometer o orçamento doméstico, ela sempre foi uma apologista da aquisição. Me encorajava a fazer extravagâncias que eu hesitava em cometer. Ela estudou encadernação, conservação e restauro de papel e de obras, apesar de que não tínhamos muitos casos de aplicação dessas medidas, porque sempre procurei adquirir obras em bom estado, mas foi realmente uma parceira.

Em sua casa, o senhor lia com sua esposa e seus filhos? Sim, eu e Guita líamos um para o outro, isso fazia parte da nossa vida. O gostoso é que os filhos também têm essa paixão, cada um a seu modo. O que se lê varia, mas todos gostam muito. Eu sempre acreditei que a leitura fosse uma fonte de prazer e a escolha tem de ser livre. A gente pode, quando muito, orientar, dar certo palpite, mas são eles que têm de desenvolver o próprio gosto. E nós conseguimos.

Todos os filhos gostam também? Gostam muito. Nós temos quatro filhos, mas, na época em que eram três ainda, as meninas eram as mais velhas e sempre ouviam os elogios pelo interesse que tinham pela leitura. O caçula, que era o menino, enjoou de ouvir tanto elogio para as irmãs e um dia teve uma explosão, dizendo: ‘Eu também gosto de ler, só que eu não sei!’ Foi muito divertido.

Qual é a sensação de encontrar um livro raro, muito desejado? O coração bate mais forte. O prazer da garimpagem é muito grande, descrever essa sensação não é fácil, mas dizer isso já dá uma ideia do que representava para mim. A gente procura coisas e, às vezes, vê um livro que a gente não conhecia, mas que desperta interesse. São os dois prazeres que a garimpagem proporciona: encontrar o que a gente procura e despertar interesse por coisas que não eram conhecidas.

Como selecionar esse ou aquele livro? Diria que tenho um sexto sentido. Eu pego um livro e ele desperta o meu interesse ou não desperta. Em geral, o bom livro sempre desperta o meu interesse. Eu não gosto de ler, até hoje, livros muito difíceis; quando isso acontece, acabo deixando pra mais tarde. Mas há exceções, aqueles que temos de ler, mesmo achando difíceis. O hábito da leitura é tão forte que automaticamente folheio um pouco o livro e já sei se ele vai me interessar. É como o namoro.


Existe uma paixão? Existe e, às vezes, a gente nem sabe explicar. Uma vez, em Londres, eu queria comprar uma edição de Rabelais [François] do século 16 e o livreiro me mostrou um exemplar de 1558. Eu peguei no livro, olhei, folheei e disse a ele: ‘Posso fazer uma observação?’, ele disse que sim e eu falei: ‘A meu ver, esse livro não é o do século 16 e sim do século 17, antedatado’. E ele perguntou: ‘Mas por que o senhor diz isso?’ Eu disse: ‘Não sei, é uma sensação, o toque, o papel, o tipo’. Fomos ver a biografia de Rabelais e, de fato, era uma edição do século 17 com a data de 1558. Ele não se convenceu de que eu não era especialista em Rabelais. Foi exatamente um caso de sexto sentido. Era muito parecido, não tenho explicação, mas eu sabia. É como ver uma imagem religiosa do século 18 e uma imitação bem feita, moderna. É questão de conhecer, mas sempre tem o sexto sentido.

Quais são os seus livros de cabeceira? Tem uma pilha e eu gosto de ler do começo ao fim, mas hoje, com meu problema de visão, tenho dificuldade, alguém precisa ler pra mim, mas quando eu tinha facilidade, fazia isso com muita rapidez, em geral lia uns dois livros por semana, oito ou dez por mês.

O senhor gosta de reler livros? Acho a releitura uma fonte de prazer real, porque você vê coisas que escaparam na primeira leitura e o livro começa a fazer parte da sua vida.

Quais os livros que mais releu? Em matéria de livros brasileiros, as obras de Machado de Assis e Guimarães Rosa, e a obra de Proust [Marcel], da literatura estrangeira.

Qual o livro preferido? Os livros são muito ciumentos e eu não posso falar em preferências, porque vou ter problemas com eles.

Dos escritores brasileiros, qual o senhor prefere? Machado de Assis é o topo da literatura brasileira, mas temos a sorte de ter muitos bons escritores. O Erico [Verissimo] é outro, mas são muitos...

Como incentivar o hábito da leitura? Quem não lê, não sabe o prazer que perde. Hoje em dia, está se fazendo um esforço para disseminar o gosto pela leitura. O ideal é começar em casa, o exemplo dos pais é a melhor orientação. É claro que existem muitos casos em que os pais não leem, então esse papel de estimular a leitura passa a ser da escola. Mas a escola costumava, e ainda costuma em alguns casos, apontar a leitura como uma obrigação. Acho isso um erro. A leitura deve ser apontada, não só como fonte de conhecimento, mas principalmente como fonte de prazer. Eu sempre fui a favor de criar o gosto, e não transmitir a sensação de obrigação, ninguém gosta de fazer nada obrigado.


São atos simples que estimulam o gosto pela leitura? São, sim. Dentro de casa, os pais lendo para os filhos – minha mãe lia pra mim, depois eu lia pra ela, que tinha uma paciência extraordinária. A coisa é simples. Eu lia muito para os meus filhos e todos têm o gosto pela leitura, começou a fazer parte da natureza deles, como fazia parte da nossa: da minha mulher e da minha.

O que o senhor considera mais inusitado em sua biblioteca, algo que desperta um carinho especial? Gosto muito de manuscritos, porque você pode acompanhar o processo de criação literária. Muitos são datilografados, mas você tem as correções que o autor fez manualmente. Os originais são difíceis de se ter, de se conseguir, mas, curiosamente, os livros se encaminham para aqueles que têm o real interesse pela leitura. Mas tem muita coisa e aqui também entra a questão do ciúme. Mas dos livros sobre o Brasil, temos as primeiras edições do século 16, dos primeiros viajantes que aqui estiveram. Do período holandês, temos os livros que foram publicados na época. De literatura brasileira, temos várias primeiras edições dos séculos 17 e 19, muitos exemplares autografados e também temos originais de livros da era pré-computador, em que os escritores escreviam a mão ou a máquina e faziam correções a mão e a gente fica conhecendo o processo de criação literária. Temos originais do Guimarães Rosa, do Graciliano Ramos, do José Lins do Rego e do Erico Verissimo.

As Brasilianas foram doadas à Universidade de São Paulo. O que o senhor espera dessa biblioteca? Ela tem de ser viva! Nós doamos a Brasiliana completa, em torno de 25 mil volumes, mesmo coisas raras e de muita estima, que é mais ou menos metade da biblioteca. Afinal, a gente passa, mas os livros ficam. Fizemos a doação com determinadas condições. A USP está construindo um prédio para receber a biblioteca, que não vai se misturar às outras bibliotecas da universidade, e a ideia é que seja uma biblioteca viva, que cresça, que promova seminários, edições, debates.

O senhor escreveu alguns livros, como Cartas da Biblioteca Guita e José Mindlin (2008), Uma vida entre livros (2008) e No mundo dos livros (2009), entre outros. Como foi passar de leitor a escritor? Escritor seria uma forma meio pretensiosa de dizer, mas escrever é muito gostoso. Comecei a ler muito cedo e com 16 estava na redação de O Estado de S. Paulo. Eu era o mais moço, entrei em maio e fiz 16 em setembro. O pessoal da redação via isso com simpatia, todos eram mais velhos e compartilhavam do meu interesse. Hoje, como não consigo ler, passei a escrever, porque isso eu consigo. Foi uma boa solução. ©

Fonte: Revista da Cultura