segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O cigarro do futuro pode até ser diferente; mas o futuro do fumante, não


Para combater a queda nas vendas, a indústria do tabaco tenta desenvolver um fumo que faça menos mal à saúde - e apela para engenharia genética e tecnologias radicais, como a máquina de fumar e o cigarro eletrônico. Será que dá para confiar?

por o Bruno Garattoni

Fumar, todo mundo sabe, faz mal. E como: segundo a Organização Mundial da Saúde, o cigarro mata até 50% dos tabagistas. Por isso, cada vez menos gente fuma – no Brasil, a porcentagem caiu de 34% para 16% da população. Na maioria dos lugares públicos, não é permitido fumar. Nos EUA, a repressão é ainda mais forte: você não pode fumar num quarto de hotel nem dentro do carro, e até na rua está ficando mais difícil (é obrigatório manter uma distância de pelo menos 5 metros de qualquer porta). Em suma: no século 21, o fumo é execrado pela sociedade. Mas e se existisse um cigarro que não fedesse, não soltasse fumaça nem fosse perigoso para a saúde – ou que, pelo menos, não fizesse tão mal? Como 1 bilhão de pessoas no mundo ainda fumam, isso poderia salvar ou prolongar até 500 milhões de vidas (e isso sem contar as pessoas que sofrem os malefícios do fumo passivo). Será possível? Pouca gente sabe, mas já existem vários projetos científicos em busca de um “cigarro 2.0”. Mas como eles funcionam? O que a gigantesca indústria do tabaco, que fatura quase US$ 100 bilhões por ano só nos EUA, está fazendo para tentar sobreviver ao século 21? O que vai acontecer com o cigarro? E com os fumantes? Continue lendo a matéria e vamos descobrir.
Não é de hoje que a indústria do tabaco tenta desenvolver um cigarro menos prejudicial à saúde – ou pelo menos procura nos convencer disso. Os esforços começaram na década de 1950, com o lançamento dos primeiros cigarros com filtro, e a segunda onda veio nos anos 70, com os chamados “baixos teores”, ou seja, cigarros que contêm menos nicotina e alcatrão. Não adiantou nada: mesmo com filtro, o tabaco continua matando, e diversos estudos mostraram que os cigarros “light” fazem tanto mal, ou até mais, que os tradicionais. Mesmo que cada cigarro, em si, seja menos tóxico, o fumante acaba tragando mais, ou consumindo mais cigarros, para obter a mesma quantidade de nicotina (que é a substância viciante presente no tabaco).
A indústria do tabaco sabe disso há muito tempo – os primeiros relatos científicos dizendo que fumar faz mal foram publicados há quase 200 anos –, mas sempre preferiu mentir. Nos anos 60, chegou a veicular propagandas dizendo que determinada marca de cigarros era “a mais consumida pelos médicos”. Grotesco, não? E totalmente mentiroso. Como conseguia enganar as pessoas e manter estável o consumo de cigarros, a indústria do tabaco nunca precisou se mexer. Mas agora, finalmente, o cenário parece estar começando a mudar.
E por um motivo muito simples. Só no ano passado, as vendas da Philip Morris, que lidera o mercado de cigarros, caíram 24% nos EUA. Uma queda violenta, capaz de apavorar qualquer empresa. E relatórios produzidos por dois bancos multinacionais, a que a SUPER teve acesso, reforçam esse panorama. As gigantes do tabaco vêm tendo sérios problemas no mercado financeiro, onde suas ações estão “micando”. Ou seja: a rejeição generalizada ao cigarro, que você vê no seu dia-a-dia, começou a doer de verdade no bolso dos barões do fumo.
Até os médicos, que sempre se opuseram ao desenvolvimento de cigarros menos perigosos (pois, na opinião deles, isso poderia acabar atraindo novos fumantes ou desestimular as pessoas a largarem o vício), começam a aceitar a idéia. “Nós apoiamos os esforços para tornar o tabaco menos prejudicial à saúde”, afirma Tom Glynn, diretor da Sociedade Americana do Câncer. Se não é possível acabar com o fumo, faz todo o sentido tentar, pelo menos, salvar a vida de quem fuma. E há exemplos indicando que essa política de “redução de danos” pode funcionar : os países que começaram a distribuir seringas e agulhas descartáveis aos viciados em drogas viram cair o número de pessoas infectadas pelo vírus da aids.
Vários fatores estão contribuindo para reacender de vez a busca por um cigarro menos letal. O primeiro veio dos tribunais. Por incrível que pareça, a indústria do tabaco acaba de conseguir, em abril, uma enorme vitória na Justiça dos EUA. Ganhou um processo em que era acusada de enganar os fumantes sobre os verdadeiros riscos dos cigarros light e, com isso, se livrou de pagar uma multa de US$ 800 bilhões. Bilhões.
É uma soma inacreditável, quase tudo o que o Brasil inteiro produziu no ano passado, e seria um golpe quase mortal nas fabricantes de cigarros. Fora economizar toda essa grana, a vitória tem outro efeito. Interrompe a série de derrotas sofridas pela indústria do tabaco (a maior delas, nos anos 90, custou nada menos do que US$ 246 bilhões em indenizações), e gera um precedente jurídico que estimula o desenvolvimento de cigarros menos perigosos – pois as empresas, sem medo de processos, ficarão mais à vontade para usar seus avanços tecnológicos como argumento de marketing.
Um último motivo reforça todo esse interesse pelos cigarros menos tóxicos. Nos anos 90, a indústria chegou a desenvolver e testar, de forma clandestina, um tabaco que continha o dobro de nicotina. Só que, hoje, fazer isso seria ilegal – pois a quantidade de nicotina que cada cigarro pode ter é definida por lei (no máximo 1 miligrama). Então, resta aos cientistas empregados pela indústria do fumo fazer pesquisas sobre redução do câncer. E uma delas está dando o que falar.
Em abril, uma fabricante de cigarros publicou um estudo, feito com cientistas das Universidades do Kentucky e da Carolina do Norte, anunciando a criação de um tabaco geneticamente modificado que contém até 90% menos nitrosaminas – a mais perigosa, e cancerígena, classe de substâncias químicas presente no tabaco. Se for verdade, é um avanço notável: até então, o máximo que os cientistas haviam conseguido era reduzir em 20% as nitrosaminas. Mas a coisa não é tão simples. Por enquanto o novo supertabaco, que não tem data para chegar ao mercado, só foi testado in natura, ou seja, como plantinha. E a realidade é diferente.
Como veio ao mundo, a folha de tabaco tem cerca de 300 substâncias químicas – entre elas a nicotina e mais 16 compostos cancerígenos. Só que as empresas de cigarro colocam mais 600 aditivos: tem de tudo, de conservantes a aromatizantes (inclusive um que, veja só, é feito a partir de secreções genitais de castor), passando por coisas como hidróxido de amônia – que supostamente ajuda a liberar a nicotina contida no tabaco. E se a gente tirasse esses aditivos? Ficariam só a nicotina e os 16 cancerígenos naturalmente presentes no tabaco.
Nos EUA, existem várias empresas que vendem justamente isso: um fumo supostamente 100% orgânico, sem aditivos. Só que, na prática, ele é quase tão perigoso quanto o cigarro tradicional. E, segundo acreditam alguns cientistas, por um motivo inusitado. O fogo.
Fumo em transe
Quando o fumante acende um cigarro, detona um verdadeiro caos molecular. A 1 000 oC , que é a temperatura aproximada da brasa do cigarro, as 300 substâncias do tabaco se decompõem e se recombinam de forma descontrolada – e maligna. Resultado? Nada menos do que 4 700 compostos químicos, dos quais 60 são comprovadamente cancerígenos. Ou seja: mesmo se for possível, um dia, manipular tudo que existe dentro da planta de tabaco e eliminar o que dá câncer, não é possível controlar o que acontece quando ela pega fogo.
Não há estudos definitivos a respeito, mas alguns cientistas acreditam que tudo acontece devido à quebra de moléculas causada pela alta temperatura. Quando o cigarro queima, alguns átomos de oxigênio se soltam e se ligam a outras moléculas – tanto as naturais da planta de tabaco como também as dos aditivos colocados durante a fabricação do cigarro. E é isso que, supostamente, provoca a multiplicação de toxinas. Reduzindo a temperatura, seria possível inibir a formação das substâncias cancerígenas. Pelo menos, a idéia é essa.
As pesquisas começaram com o Eclipse, que foi criado pela multinacional Brown & Williamson nos anos 90. Era um cigarro de aspecto e funcionamento normais: você acendia (com isqueiro ou cigarro), punha na boca e tragava. A diferença é que, em vez de brasa, o Eclipse tinha um pedacinho de carvão quimicamente tratado, que só atingia 300 OC. O suficiente para fazer fumaça, mas apenas um terço da temperatura de combustão de um cigarro comum. Em teoria, isso reduz a atividade molecular durante a queima do tabaco – e diminui a quantidade de substâncias cancerígenas. O Eclipse chegou a ser lançado no mercado americano, mas foi um megafracasso e virou motivo de piada entre os fumantes, que odiaram o sabor do produto. Ainda bem. Pois, alguns anos mais tarde, um estudo mostrou que o carvão liberava suas próprias substâncias cancerígenas, ou seja, o novo produto não era nada seguro.
Entra em cena uma proposta ainda mais radical – a maquininha de fumar. O fumante introduz o cigarro num aparelho portátil, que se chama HeatBar, e dá a primeira tragada. Aí, o computador de bordo aciona uma resistência elétrica (como a de um chuveiro), que esquenta o tabaco a aproximadamente 300 graus, e a fumaça é liberada. Na prática, trata-se de um cigarro de “baixa temperatura”, como o Eclipse. Mas com uma grande novidade. O cigarro não fica aceso o tempo todo – depois que o fumante dá a tragada, a maquininha desliga automaticamente a resistência elétrica, e o cigarro pára de queimar. Com isso, pára de emitir fumaça. A conseqüência, segundo os inventores do HeatBar, é uma grande redução, de até 90%, no fumo passivo.
Na prática, essa tecnologia é uma tentativa de driblar as proibições de fumar em locais públicos. O aparelho já está à venda na Europa, mas por enquanto não fez muito sucesso. Talvez porque ele seja, pura e simplesmente, ridículo. A maquininha é grande, tem mais ou menos o tamanho de um charuto. E o HeatBar não pode ser considerado seguro: como o sistema inclui tabaco, o fumante continua ingerindo boa parte das substâncias cancerígenas presentes num cigarro normal.
O fim do tabaco?
“Queimar tabaco nunca será seguro. Mas é possível criar outras maneiras de fornecer a nicotina para o fumante”, diz o cientista Thomas Eissenberg, que faz pesquisas sobre tabaco na Universidade da Virgínia e testou praticamente todos os cigarros de alta tecnologia já desenvolvidos. Segundo Eissenberg, a resposta é criar um cigarro sem fumo. Parece bizarro, mas já existe: é o cigarro eletrônico, que já está à venda em 7 países. Dentro dele, fica um líquido que contém nicotina pura. Essa solução é aquecida por um circuito elétrico e vira vapor – que é tragado pelo fumante. E, como esse vapor só contém água e nicotina, o cigarro eletrônico poderia reduzir bastante o risco de câncer (pois a nicotina, teoricamente, não tem esse efeito). O problema é que cada cigarro eletrônico tem 20 vezes mais nicotina do que o comum. E isso, além de aumentar a possibilidade de o usuário se viciar, pode ser perigoso para a saúde. “A nicotina é tóxica. E, conforme a dose, pode ocasionar parada cardíaca”, explica a médica Tânia Cavalcante, do Instituto Nacional do Câncer.
Segundo seus inventores, o cigarro eletrônico tem um dispositivo que limita a quantidade de tragadas que o fumante pode dar, eliminando o risco de envenenamento. Na China, a novidade está pegando: já foram vendidos mais de 300 mil cigarros eletrônicos (da marca Ruyan). Um bom patamar, considerando que o produto é caro – um kit com o aparelho e 5 ampolas de nicotina custa US$ 200.
Mesmo com todo o oba-oba em torno dos cigarros high tech, a verdade é que eles ainda representam uma parcela insignificante da indústria do fumo. O que as empresas realmente querem, claro, é continuar ganhando com os cigarros tradicionais – cujo custo de produção é muito menor. A multinacional Philip Morris, por exemplo, investe apenas US$ 100 milhões por ano em pesquisas de alta tecnologia. É uma quantia irrisória, menos do que a empresa gasta para patrocinar a equipe Ferrari, na Fórmula 1. Para continuar vendendo cigarros sem investir muito, a estratégia é apostar nos países subdesenvolvidos, onde as pessoas têm menos acesso à informação (e, portanto, tendem a fumar mais).
E, nos países ricos, criar variações sutis para os produtos que já existem. Isso porque, como nesses mercados a propaganda de tabaco é fortemente limitada, fica muito difícil construir do zero uma nova marca. Nos EUA, a última novidade chega a ser bizarra: um cigarro desenvolvido especialmente para o público feminino, que tem detalhes de verde e rosa pintados no filtro e usa o slogan “leve e sedutor”. Hã? Por mais que a tecnologia evolua, o vício em nicotina nunca será leve, nem sedutor. Mesmo que, um dia, os cigarros sejam mais seguros, eles jamais serão totalmente confiáveis. “Pular do 3O andar de um prédio é menos perigoso que pular do 10O? Não”, explica Tom Glynn, da Sociedade Americana do Câncer. Verdade.
O cigarro do futuro pode até ser diferente; mas o futuro do fumante, não. A melhor maneira de evitar problemas de saúde é, e sempre vai ser, a mais prosaica de todas. Parar de fumar.
• A maioria dos fumantes é do sexo masculino e tem de 18 a 24 anos
• O cigarro mata até 50% dos fumantes
• A China é o país onde mais se fuma: 57,4% dos homens
• Apenas 15 países colocam mensagens de advertência nos maços de cigarro
• A cada 10% de aumento no preço do cigarro as vendas caem até 8%
• Entre pessoas internadas por problemas psiquiátricos 59% fumam